A MULHER QUE EXISTE EM MIM… O DOM DE ARDER!

“A mulher é uma incógnita… Um monumento à dúvida.” Mario Nhardes

Fogueira

Mais uma crônica de Déa Januzzi que eu adoro. Esta é a mulher que existe em mim… que arde, incendeia, para clarear o próprio caminho… assim, assim… Espero que apreciem. Leia:

A mulher que existe em mim está dormindo. Um sono tão profundo que nem príncipe encantado pode acordar. Nem Maria nem Madalena nem Verônica nem Amélia. A mulher que existe em mim não consegue lavar, passar, cozinhar, arrumar, sofrer em silêncio diante do calvário de um filho. Nem enxugar o suor que escorre da via-crúcis de todo dia. Nem quer ser a mulher de verdade. Nem a que se arrepende do que fez. A que expia os seus pecados.

A mulher que existe em mim viajou – e de algum lugar do passado escreve cartas de alforria para as escravas da paixão. Desse lugar bem distante, a mulher que existe em mim manda recados urgentes, pede socorro. Grita, esperneia, mesmo em silêncio, emudecida.

A mulher que existe em mim evaporou, e as gotas ficaram condensadas no ar dessa opressão. Você ainda sente o perfume dessa mulher que, em noites de Lua cheia, exala na esquina da sua casa?

A mulher que existe em mim não tem nada a ver com Cleópatra, a rainha do Egito, que se banha em leite de cabra com pétalas de rosas e almíscar, que desenha os olhos com lápis crayon para chegar perto de sua nobreza. Nem com as gueixas, que se preparam, se enfeitam, se vestem, para agradar o outro.

A mulher que existe em mim está engessada. Ela não sabe mais dançar. Não tem mais ritmo próprio, se esqueceu dos passos, da ginga, das curvas, da festa que existia em seu corpo. A mulher que existe em mim está presa a uma tala de gesso. Não pode virar para um lado nem para o outro. Esqueceu os acordes da alma.

A mulher que existe em mim virou fantasma de uma outra que gostava de rir e de brincar, de celebrar a vida. Vive em sobressalto, em pesadelo constante. A mulher que existe em mim não sabe bordar nem costurar nem tricotar, muito menos fiar, pois sempre fere o dedo na roca. Não tem tranças para jogar lá de cima do castelo onde está presa. Essa mulher cansada está enroscada nos fios que ela mesma produziu.

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A mulher que existe em mim foi passear e não voltou para mostrar que ainda é tempo de semear a sensibilidade, de conversar em calma, de confessar coisas boas, de compreender e de germinar. Mas a mulher que existe em mim vive em transe, por amar demais, sem medidas, sem pouso, sem sossego. De vez em quando, ela precisa ficar internada no hospício da própria loucura, pois a mulher que existe em mim não é lúcida, muito menos comportada. Nem pode ser colocada numa camisa de força. Nem em redoma de vidro.

A mulher que existe em mim não se quebra, nem se dissolve.
A mulher que existe em mim arde como flor de papoula que abriga o ópio dentro de sua beleza rubra e estarrecedora. Ela não mostra o afeto que possui para não gastar. Ela não ama em dobro para não desgastar, porque amor demais esgota.

A mulher que existe em mim desapareceu, se exilou em outras paisagens, no cair da tarde, entre nesgas douradas do crepúsculo. Às vezes, ela é a poeta que se descobriu já no entardecer da vida. Outras vezes precisa de colo, como uma menina.

A mulher que existe em mim briga o tempo inteiro consigo mesma, como se estivesse enjaulada num papel que não é o seu. Ela dorme um sono letárgico, entorpecedor, analgésico, ansiolítico – e acorda tonta, desmesurada.
A mulher que existe em mim, um dia, amanhece sem susto, renovada. Desperta sem cansaço, refeita, em paz, sem modelos para copiar, sem culpa, sem medo, sem gesso, sem molde, sem fôrma de bolo.

A mulher que existe em mim agora arde, incendeia, para clarear o próprio caminho. A mulher que existe em mim acordou, espreguiçou, sem beijo de príncipe encantado. Sem varinha de condão, sem nenhuma mágica, a mulher que existe em mim derrubou as paredes do tédio, arrebentou as grades da mesmice. Revirou-se pelo avesso, se contorceu, até encontrar o seu cerne.

A mulher que sou, não quer mais ser forte nem sofredora nem amarga nem estar em dívida consigo mesma. Muito menos carrasca de si própria. A mulher que existe em mim não é algoz, mas tem olhos profundos para decifrar o mundo.

Esta crônica da jornalista e escritora Déa Januzzi, foi publicada originalmente no Estado de Minas.

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